A Reforma Administrativa e o desmonte do serviço público no Brasil
- Rafael Meurer

- 23 de fev. de 2021
- 5 min de leitura

A reforma administrativa é parte de um conjunto de mudanças que vêm sendo implementadas no país nos últimos anos. A PEC do Teto congelou aumento nos gastos públicos em todas as áreas nos próximos vinte anos. A reforma trabalhista atacou os direitos dos trabalhadores da iniciativa privada, mas também atacou os sindicatos como um todo. Depois veio a reforma da previdência, que dificultou a aposentadoria de grande parte dos trabalhadores. As próximas são a reforma administrativa e a reforma tributária. Junto com a PEC 32, da reforma administrativa, caminham outras duas propostas, as PEC’s 187 e 188. Juntas elas possibilitam o avanço das privatizações no serviço público essencial. Dessa forma o Estado brasileiro vem sendo deformado sob o argumento de modernização necessária.
Essa dita reforma é um conjunto de alterações. Após a PEC 32/2020, virão alguns projetos de leis para regulamentar a vida funcional dos servidores públicos, alterando os estatutos dos servidores e retirando direitos. Isso abrirá caminho para a aplicação do chamado princípio da subsidiariedade, onde o poder público só entrará onde a iniciativa privada não puder (não tiver capacidade) ou não quiser entrar. Abre a possibilidade do poder público fazer “convênios” com a iniciativa privada, podendo repassar prédios públicos e até servidores para atuação dessas empresas.
Os defensores da reforma administrativa se utilizam de uma série de argumentos para justificar sua “necessidade”. Mas estes argumentos são equivocados, não refletindo a realidade. Mesmo assim, a população em geral acaba acreditando em tais discursos e apoiando essas alterações.
Constantemente se fala que o Estado é inchado, que existe muito servidor público, que é preciso diminuir a máquina pública. Na verdade, o Brasil tem, proporcionalmente, menos servidores públicos que os EUA, o exemplo de perfeição dos neoliberais. No Brasil existem 12 servidores para cada 100 trabalhadores da iniciativa privada, enquanto nos EUA esse número é de 17 para cada 100. Se compararmos aos países europeus, esse número é ainda maior. Se um setor ou outro tem mais servidores que o necessário, isso não significa que existem muitos servidores. Basta ir em uma escola pública ou um hospital público que será perceptível a falta de servidores.
Afirmam que os servidores públicos são um grupo homogêneo, todos com muitos privilégios. Oras, mais da metade dos servidores públicos no Brasil são municipais. Pouco mais de 30% é de servidor estadual e o restante, pouco mais de 10%, são servidores federais. Os altos salários se encontram em alguns grupos estaduais e federais, como magistrados, promotores, auditores e militares. A maioria absoluta dos servidores ganham salários médios ou baixos.
Se construiu um discurso que nem todos os servidores entrarão na reforma e que a reforma é para acabar com os privilégios. Aí existe a grande contradição. Todos os servidores serão atingidos, com algumas exceções. As exceções são justamente aquelas carreiras reconhecidamente privilegiadas, como magistrados, promotores, auditores e militares. Oras, os privilegiados não entraram na reforma, apenas o servidor “comum”. Quem hoje já tem altos salários e inúmeros benefícios, continuarão tendo. Esses que são utilizados pelo governo como exemplo de privilégio a ser combatido.
Um outro assunto, que é muito utilizado para justificar a reforma administrativa, é a alegada ineficiência do serviço público. Como já foi dito acima, esse argumento não é novo, foi amplamente utilizado para justificar as privatizações. Mas é injusto comparar iniciativa privada e administração pública. Primeiro é importante lembrar que o objetivo de uma empresa é o lucro. Tudo se justifica para atingir o lucro. Na administração pública o objetivo é o bem estar da população. Muitos dos serviços públicos não seriam atendidos por uma empresa, justamente porque não dariam lucro, mesmo sendo essenciais para uma determinada comunidade. Fora isso, a dimensão da administração pública é incomparável ao setor privado.
É afirmado pelo governo que a reforma só atingirá os servidores novos, que entrarem no serviço público depois da aprovação da tal reforma. O único ponto que valeria apenas para os novos servidores seria o fim do regime jurídico único, o fim do Estatuto dos Servidores. O restante das alterações valerá para todos os servidores, pois abre a possibilidade de exoneração por “baixo desempenho”, que será decidida de forma subjetiva pela chefia. Além disso, acaba com a progressão na carreira por tempo de serviço e por titulação, permitindo apenas por desempenho, o que deixa os servidores à mercê da comissão de avaliação indicada pelos governos. Acaba com os triênios e licença prêmio, além de proibir reajuste retroativo. Ou seja, se o governo ficar anos sem dar aumento e quando for conceder o reajuste, será somente daquele ano, não dos anos anteriores.
Basicamente o governo propõe criar diferentes tipos de servidores. a) Os ocupantes de cargos de chefia e assessoramento, os atuais comissionados. Neste caso, acabando com as chamadas funções gratificadas, onde o indicado deve ser obrigatoriamente servidor de carreira. A proposta é deixar apenas cargos de livre indicação política pelo governo; b) Os servidores por prazo determinado, onde o governo poderia contratar por um prazo, mas poderia exonerar a qualquer momento, sem nenhuma garantia. Situação pior que os atuais temporários; c) Os servidores por tempo indeterminado, que teriam um prazo de estágio probatório e depois ficariam em definitivo, mas sem estabilidade e nem mesmo as garantias da CLT, como fundo de garantia ou seguro desemprego; d) Os servidores em estágio probatório, que seria um tempo de experiência, onde o governo poderia exonerar a qualquer momento, sem justificativa de desempenho. Ao final do estágio probatório o servidor não teria direito a efetivação por bom desempenho, poderia ser exonerado por simples decisão da chefia; e) Os servidores de algumas carreiras tidas como “típicas de estado”, como tributação, fiscalização, militares, magistratura e ministério público. Esses últimos não terão qualquer alteração, pois são aqueles que não entrarão na reforma, os verdadeiros privilegiados.
Os servidores aposentados também serão atingidos indiretamente. Por um lado, aqueles que entraram antes de 2003 e têm o direito à paridade não terão mais uma categoria para fazer a paridade. Prejudicando os servidores ativos, prejudicará os inativos. Por outro lado, com o número de servidores sendo levados ao regime geral, que é a intenção, os regimes próprios deixarão de arrecadar as contribuições, o que vai levar esses regimes à uma crise financeira. Assim, o governo terá justificativa legal para ampliar os índices de contribuição com a previdência nestes regimes, incluindo os já aposentados.
Um outro ponto importante é a concentração de poder nas mãos do executivo. Com a reforma administrativa, qualquer alteração na estrutura das carreiras, na criação ou extinção de cargos, na remuneração, nos direitos em geral dos servidores, não terá que passar pelo legislativo, tudo será feito pelo executivo. Além disso, essas alterações atingirão o serviço público da União, Estados e Municípios.
Na prática, o que acontece hoje com os cargos de livre nomeação, conhecidos como indicação política ou de confiança, será a regra no serviço público. A cada gestão os serviços poderão ser alterados, provocando a descontinuidade do serviço público.
A PEC 32/2020 traz uma série de alterações que vão muito além de tirar direitos dos servidores públicos. O serviço público como conhecemos no Brasil está comprometido. Todo o esforço feito para termos uma educação e saúde pública para todos está comprometido. O reflexo disso é na vida de toda população que precisa desses serviços públicos, que é a maior parte do povo brasileiro.
Rafael Meurer, advogado e professor




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